capa do livro

A máscara mágica

Francisco das Chagas Sena

Estaria certo o poeta ao afirmar que o belo adora tirar a máscara, mas o feio não? Ficariam com a razão aqueles que, ao contrário, encontram o que há de mais belo no humano, mesmo vivenciando situações extremas, sejam as que acontecem através do trágico, do que há de mais pitoresco e até de mais fealdade? Ao ler o livro A máscara mágica, de Francisco Sena, praticamente a cada parágrafo, encontramo-nos diante de tal dilema.

Beleza? Que beleza? Este livro, em síntese, conta a história de Aquiles. Este é um gato – um animalzinho no seu sentido literal –, o qual, como outros da mesma espécie habitam o campus da Praia Vermelha, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Desnecessário apontar que tal universidade, a qual autor estudou, é também habitada por um conjunto de professores, bibliotecas, pesquisas de boa qualidade que saem dali para todos, ou seja, trata-se de território que possui uma bateria de sonhos, esperanças, lutas e muitas outras coisas, entre elas, um grupo de animais – gatos para ser mais precisos – que ali estão e foram abandonados, mal se sabe por quem. Tais gatos, no geral, como não têm casa, carinho e cuidados específicos de um humano, sobrevivem, em geral, à custa de migalhas dos que, empanturrados, as deixam como sobras para o lixo, ou melhor, para esses “abandonados”.

Mas o que tem a ver a história de um animalzinho que, ocupando a figura de um “sem teto”, lá está ele entre os milhares de alunos, professores e funcionários de uma das melhores universidades públicas do Rio de Janeiro e do Brasil?

Fiquem tranquilos, embora possam viver de “sobras” ou da “caridade” de outros (que lhes compram rações), tais gatos não tiram a vaga de ninguém nessa universidade, pois que não frequentam as aulas, nem os laboratórios, quer dizer, eles ficam apenas em redor da Escola de Serviço Social, do Instituto de Psicologia, locais que lhes põem em contato direto com as pessoas que lhes afeiçoam. No caso específico deste livro, a narrativa se dá particularmente a partir de um desses gatos que recebe o nome de Aquiles. Este, por sua vez, tem mais sorte que um desses meninos de rua que vive na cidade maravilhosa: um dia, Aquiles é adotado por uma “gata”, a qual, além de humana, é aluna da psicologia, rica, bonita, culta e poderosa. Ah, claro, também mora na Zona Sul.

O que tem a ver a história de um simples animalzinho que foi abandonado, mas que conseguiu entrar na UFRJ sem se submeter à “guilhotina” do vestibular (este monstro que tende a reproduzir injustiças sociais, já que a grande massa dos aprovados são nada mais do que os filhos de gente de bem do Rio, quer dizer, bem colocada no mercado)?

Calma! Além de um “casamento” bisonho, entre uma jovem rica, bonita e um gato-animal “sem teto”, haverá muitas outras coisas curiosas a serem vistas além da dialética da luta de classes. Aliás, a luta de classe pode até aparecer na história de Aquiles e da aluna que o adotou; entretanto, contraditoriamente, ela será anulada por um ato de amor, ou melhor, de adoção partilhada entre uma garota rica e um “sem teto” que vivia em situação precária no citado campus da UFRJ.

Antes que alguém imagine algo sem ler o livro, já adianto que a narrativa não se desenvolve apenas por essas diferenças. É certo que, pelo menos no princípio, o gato Aquiles apresentou problemas de adaptação: uma coisa é acordar de manhã por entre as buzinas dos carros que chegam ao “campus” e, às vezes, até precise fugir diante da situação de que, ao ir caçar as migalhas nos ambientes de alimentação, alguns dos estudantes que lhe dava um passa fora; outra é ter um cantinho em um apartamento, todo bonito, na Zona Sul, a poucas quadras da praia... Sim! Se todo relacionamento a dois já é difícil, imagine sob essas diferenças sociais. Contudo, o grande problema da narrativa não segue tal caminho. Quer dizer: o diabo foi que o gato Aquiles, talvez de tanto receber carinho dessa jovem, acabou ficando mal acostumado e, um belo dia, se viu não mais como gato, porém como um homem, com corpo, sangue, ossos e até com alma e tudo.

Quer dizer que, ao contrário da “metamorfose” de Kafka, Aquiles, que era literalmente um animal, digo, um desses animais abandonados que viviam no campus da UFRJ, depois de ser adotado por uma, digamos, “pequena burguesa”, transformou-se de animal irracional em animal racional, tal como nós seres humanos? Sim, exatamente!

Mais e aí? O que deu? Como as diferenças sociais entre os dois eram gritantes, talvez seja impossível imaginar um romance entre o Aquiles-homem com a gata-jovem mulher, mas, como nada é impossível para um par que vive junto... Sugiro que se leia o livro.

Pois é, aqui o desfecho dessa narrativa ficará a cargo do leitor. Do que posso adiantar; apesar de ter um destino aparentemente desafortunado, Aquiles virou-se e, pelo menos, saiu do anonimato de um desses gatos abandonados do campus da universidade e tornou-se personagem de um livro literário, portanto, recomendo a leitura.

O livro poderá matar o prédio? A escrita ajudará na superação da trágica situação de muitos miseráveis que querem chegar à universidade, conquistando os bens da cidadania? Embora isto seja o desejo de muitos, nos quais me incluo, tal fato depende muito mais de uma série de fatores do que de uma simples luta individual, pois que um indivíduo sozinho, bem como um livro, por mais apaixonado e esforçado, dificilmente colocará abaixo toda uma muralha construída historicamente contra o êxito de um “sem nada”. Contudo, posso dizer que ao lermos o livro de Francisco sobre a trajetória do Aquiles, tais questões, a todo instante, nos intrigam e nos incomodam. Enfim, o que eu sei é que não dá para passar pela vida apenas querendo viver como se a vida fosse um simples piquenique (piqueniques dos que querem apenas viver em prol da “Barra da Tijuca” e da “Zona Sul”); não dá para passarmos indiferentes ao problema de Aquiles e de muitos outros “sem teto”, os quais estão à margem das grandes universidades e da sociedade hegemônica, exceto se quisermos viver o tempo todo colocando as nossas máscaras para o baile de uma farsa da globarbarização, a qual, se ficarmos de braços cruzados, não terá fim. Daí, quem sabe, um dia descobriremos que nossa vida não passou da de um inseto que deixou de ser humano, enquanto um gato, que foi adotado e viveu na zona mais rica do Rio, tornou-se humano.

Rogério Lustosa Bastos
Prof. associado do Depto. de Métodos e Técnicas da ESS/UFRJ; pós-doutor em Psicanálise pela Uerj.

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